Era um rádio velhinho, debaixo da cama
Vera Garcia
Sim, eu sei, já deveria de estar a dormir. Em vez disso, estou aqui deitada no meu amigo sofá, companheiro de tantas insónias, analgésico de dores nas pernas e sei lá mais o quê. Estão todos a dormir e, egoisticamente, nada mais neste momento me parece mais aprazível do que estar aqui a ouvir o silêncio. De luzes apagadas, apenas o som ténue do frigorífico e da box da televisão. Sempre tive esta relação egoísta com a noite. Lembro-me quando tinha sete ou oito anos, havia lá em casa um rádio velho que o meu avô Chico tinha trazido da Alemanha e oferecido à minha mãe. Na verdade, tudo o que era música e livros eu arrecadava no meu quarto, tal como se se tratasse de um santuário só meu. O rádio velhinho, a guitarra do meu pai, uns auscultadores, as k7s dos anos 60, 70 e 80 e os livros, que carregava um a um do sótão para as prateleiras do meu quarto. Esperava que os meus pais se deitassem, coisa que ocorria por volta da meia noite. Fingia estar a dormir profundamente quando o meu pai entrava no meu quarto a fazer a ronda...lá ia ele ver se eu estava tapada e se a janela do quarto estava trancada, não fosse algum ladrão levar-me! Entre o encostar da porta do quarto, o meu pai dava exactamente 7 passadas largas, lentas até eu ouvi-lo a sentar-se na cama, a descalçar os chinelos, a esticar-se e a tapar-se com as mantas. Silêncio. Perfeito. Num ápice, enfiava os auscultadores na cabeça, ligava-os no rádio, empurrava-o para debaixo da cama, não fosse o diabo tecê-las e ficava até à uma e tal, duas da manhã a ouvir música! ... Por vezes, tinha consciência de que, daí a umas horas, a manhã ia ser muito difícil e lá estaria a minha mãe a empurrar-me as malvadas papas Nestum com mel pela boca abaixo! No fim do meu quarto ano ou quarta classe, como se dizia antigamente, a professora fez uns versos a cada um dos seus alunos. O meu dizia assim e ainda me lembro: Ei-la, que vem a chegar! Como sempre, vem atrasada! Acabou mesmo agora de entrar, / A nossa menina envergonhada!
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